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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A gente se acostuma


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ver vista que não sejam as janelas ao redor. E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma e não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo à luz. E, à medida que se acostuma, se esquece do sol, se esquece do ar, esquece da amplidão.
A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: “hoje não posso ir”. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e necessita. E a lutar para ganhar com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir as revistas e ler artigos. A ligar a televisão e assistir comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias de água potável. À contaminação da água do mar. À morte lenta dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta por perto.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta lá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua o resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem muito sono atrasado.
A gente se acostuma a não falar na aspereza para preservar a pele. Se acostuma para evitar sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colassanti

Crédito da imagem: http://newsdyfteria.blogspot.com.br/2010/08/dunas-mar-e-sol-em-natal.html

Equívocos divinos


Um daqueles doutores, autodidatas no conhecimento, achava algumas imperfeições na criação divina. Andava muito nestas colônias e deparava-se com inúmeras situações equivocadas.
Incompreendia, a título de exemplo, ver os mais fortes digerindo os mais fracos; fêmeas carregarem seios/tetas por uma vida (tendo uso restrito); irmãos, por dinheiro e fanatismo, matarem-se; adoentados, nos hospitais, deglandiando-se com o infortúnio; bandidagem e polícia, no fogo cruzado, matarem inocentes; povos, por terras, estabelecerem sangrentas guerras... Uma insanidade/loucura, para uma espécie dita inteligente/racional, chamada Homo sapiens.
Sucedeu-se, num belo dia, o camarada andar pela lavoura. Um sol quente de verão e as plantações clamando por água! Procurou alguma sombra e viu a importância das árvores. Algumas, no ínterim das lavouras, mantinham-se como aparentes estorvos. Apreciou sua roça de aipim. Este, no interior da plantação e numa consorciação, reparou as volumosas melancias. Uma dádiva para o sedento!
Degustou alguma debaixo dum tradicional guabijú. Uma planta frondosa, abrigo/refúgio tradicional de aves, poupada ao longo dos anos em meio à devastação humana... Procurou, no ínterim da comilança, fazer uma comparação. Como algumas modestas ramas, como as melancias, poderiam produzir dão saborosas e volumosas frutas? O magnífico guabijú, imponente e majestosa, modestas frutinhas? Uma aberração/inversão de qualidades e valores na sua ingênua compreensão. Alguma miúda/singela, nesse intervalo, caiu-lhe sobre as costas. Refletiu sobre o fato: “- Imagina se tivesse sido uma dessas melancias? Uns cinco a sete quilos! Que estrago!”.
O Criador, afinal, fez o mundo certo em linhas tortas. Convém aceitá-lo como ele se apresenta. Nada de colocar defeito em tudo ou em todos. Querer saber melhor sempre as coisas. O jeito é degustar e entender o prazer de cada realidade. Que não podemos aprimorar/corrigir convém aceitar. O indivíduo, desconhecendo os inúmeros ângulos das situações, tem extrema facilidade em equivocar-se. Muitos, antes de nós, passaram por situações semelhantes e nada mostra-se muito inovador debaixo desse velho sol.

Guido Lang
Livro “Singelas Histórias do Cotidiano da Vida”

Crédito da imagem: http://www.carazinho.rs.gov.br/web/index.php?menu=imprensa&sub=news&id=789