Translate

sábado, 5 de janeiro de 2013

O Faísca



O Faísca era um cachorro belo e excepcional. Adestrado para ser uma parceria agradável e ímpar. Acompanhara o dono nas suas muitas andanças e passeios. A preferência ocorria nas idas e vindas aos armazéns e bares. Aprendeu cedo a correr atrás ou ser carregado de carro. Este, conhecendo os perigos do trânsito, saia da estrada na proporção de achegar-se algum veículo. A paciência parecia infinita em esperar  o dono nas rodadas de carta/baralho...
O ensinamento essencial relacionou-se a guarda do pátio. Quaisquer lagartos e raposas viam-se exterminados, gaviões e ouriços alertados da sua presença; eraras e graxains perseguidos (até serem entocados)... A amizade e consideração, pelo chefe, parecia infinita. O cuidado do patrimônio familiar  mantinha-se a razão existencial. Os olhares e ouvidos recaiam sobre os gestos e palavras do adestrador. O cão, na sua compreensão e humildade canina, parecia ter nascido em função do benfeitor. Acompanhava-o nas diversas e inúmeras paragens.
A alegria e consideração maior sucediam-se nos momentos de caçadas e pescarias. Cachorro e tratador constituíam uma simbiose ímpar. Eles, nas caladas das manhãs e noites, devassaram arroios e matos. As presas conheciam a perseguição e extermínio diante da parceria. O lugarejo, em meio a devassa dos territórios  ostentava-se deveras diminuto. Quaisquer refúgios, nos cantos e recantos, acabaram localizados e a pena, pelo azar e cochilo, ostentava-se a punição extrema (morte). Os dois! O terror das colônias! Relatos e histórias das aventuras e peripécias não faltaram nos comentários  e falatórios das bodegas e vendas.
O Faísca, numa certa ocasião, queria inovar e relachar. Os instintos levaram-o a “cair na fraqueza do espírito”. A sexualidade, como desejo de propagar a espécie, fez-o “correr atrás duma namorada”. O comum, na localidade, foi a romaria da cachorrada! Os machos, de procedência variada, queriam atender a parceria e satisfazer o instinto de ser pai. Alguma alma maligna/misteriosa, em meio a afobação e briguedo generalizado, armou armadilha e enjaulou o Faísca. Este entrou numa tremenda fria. Os responsáveis castigaram-o com dura pena: a castração. O  faro e serviço do Faisquinha viu-se diminuído e sossegado!
O dono, deparando-se com a realidade do fato, caiu no espanto e raiva. Os responsáveis esconderam-se no anonimato  Eles, mais ou menos dias, “acabarão batendo com a língua nos dentes”. O apegado e ativo Faísca mudou de filosofia. Ele, daquela ocasião em diante, tornou-se amigável e sereno. A vida entendeu como comer e dormir! O bicharedo, no pátio, tornou-se abusado e ousado diante da sua indiferença. Que singelas bolotas fazem tamanha diferença?
As peripécias de uns, incomodam outros.  Ingênuos animais, inúmeras vezes, pagam o ônus da indisposição de humanos. Abusos, de uma ou outra maneira, vêem-se observados e punidos. Aplicar peças ostenta-se prática frequente no meio colonial.

Guido Lang
“Singelas Histórias do Cotidiano das Colônias”

Crédito da  imagem: http://br.freepik.com/fotos-gratis/filhote-de-cachorro-bonito-branco_530838.htm

Os Colonos



          “Pobres de nós”, choramingava o Marcos. “Cada dia que passa a situação fica pior. Ao, invés de progredir, a nossa colônia vai para trás que nem rabo de novilho. Também, como poderia ir bem se um prefeito que vale menos que uma fruta podre e que não tem escrúpulo em entregar até as nossas vidas por um lucro qualquer?
Ele, sim, tem uma bela mansão, guarnecida e bem abastecida, e ganha por dia o que nós não ganhamos num ano. Soube-se, inclusive, que recentemente, só numa negociação ganhou um milhão.
Agora, se nós déssemos algum valor a nós mesmos, poderíamos impedir isso.  
Mas nós somos leões dentro de casa e cordeiros fora, na rua. Eu até a roupa de cama e os atoalhados estou vendendo para sobreviver e, se continuar assim, vou ter que vender também a minha casinha.
Onde vamos acabar se nem os homens, nem os santos tem mais pena de nós? Chego até a pensar que tudo isso acontece por vontade de Deus! Porque, veja, ninguém mais confia no céu, ninguém mais observa o jejum nem outras práticas religiosas, ninguém tem mais respeito por Deus. Todos ficam o dia inteiro só pensando no dinheiro e procurando ter mais lucros.
Antigamente, até as mulheres de boa família saíam em procissão indo ao templo, implorando Deus por qualquer coisa, até para fazer chover. E Ele fazia chover mesmo, e todos voltavam para casa molhados, mas rindo de alegria.
Agora, os santos, se quiserem ajudar, estão de mãos e pés atados, porque todos perdemos a religião. Veja, os campos...”
A essa altura, Antônio, o bodegueiro, interrompeu a ladainha. “Por favor, homem, não fique lamuriando demais. Hoje as coisas andam assim e amanhã irão assadas, como dizia o compadre que perdeu o porco. O que hoje parece um completo desastre, amanhã poderá ser até uma grande sorte. A vida é assim mesmo: vai para lá e vem para cá.
Reconheço que é verdade que o país estaria muito melhor se houvesse homens decentes no comando, mas precisa também considerar que este é um período de dificuldades generalizadas. Por isso não devemos ser exigentes demais, porque todo mundo está nessa, e o céu é igual para todos.
Se tu estivesses morando em outro país, com certeza acharias que aqui, no teu, os leitões andam na rua já assados e temperados. Além disso, daqui três dias começa a nossa grande festa. Fica alegre, Marcos”.
         
Autor: Caius Petronius Arbiter ou Caio Petrônio Árbitro (27 – 66 d.C), escritor romano.