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terça-feira, 19 de março de 2013

A esperteza do filho


Um certo advogado, por anos, deixou o filho estudar advocacia. Este, como tradição familiar, abraçaria uma sina profissional. Três gerações seguiram-se na atuação das leis. O sobrenome fazia história com a eficiência no serviço.
Os moradores, do pacato lugarejo, sabiam procurar os familiares (na proporção de “envolverem-se nalguma fria ou querela legal”). O genitor, como homem com trato com a lei, sabia fazer respeitar os direitos civis (diante dos argumentos e poder das autoridades). O advogado, em várias oportunidades, tinha concorrido a cargos públicos, exercido mandatos, viajado muito (neste mundo afora)... Ele, portanto, conhecia as artimanhas, gentes e lugares (“cidadão curtido nesse velho mundo”).
O filho, estudante conceituado numa universidade pública federal, queria somar-se a fama. O sonho e a realização, com a aposentadoria do ancião, consistia em assumir o escritório de advocacia. Os ganhos do serviço dariam para manter a dignidade e qualidade de vida. Este, em meio a sua ingenuidade e imaturidade, achava-se deveras astuto e esperto. Ele fazia questão de revelar esta habilidade e vocação.  Afinal, passar anos nos bancos escolares não é privilégio e “prato de quaisquer um”.
Os eventuais concursos públicos, no ramo do Direito, viam-se também acompanhados e efetuados (com razão de aprovar e assumir algum posto mais elevado nas instâncias da República). Este, como desejo geral, queria ganhar o dinheiro fácil e graúdo (sem maiores aborrecimentos e atropelos). A solução, na proporção de não haver concursos e aprovações, consistia em exercer a profissão no seio do escritório.
O cidadão, formado nos estudos, assumiu processos do genitor. Havia algum especial, relacionado à disputa de terras, de duração interminável. As partes envolvidas, de maneira nenhuma, chegavam a um denominador comum. O processo mantinha-se conhecido nas instâncias do Judiciário. Os moradores, nas conversas informais, falavam da infindável querela. Esta, nos anos de disputa e intriga, tinham consumido somas expressivas de honorários das partes.
O advogado jovem, com os últimos e vastos conhecimentos (assimilados em termos de legislação com os doutores), queria mostrar eficiência e serviço. Queria, em síntese, demonstrar a profissionalização e fazer o nome na praça!
O genitor, com a aposentadoria, procurou tirar umas boas e prolongadas férias. Ele, com sua adorável e conceituada esposa, foi fazer aquele cruzeiro pelo Caribe. Um sonho de décadas e espécie de segundas núpcias. O casal ficou umas boas semanas fora do lugarejo (para arejar a cabeça e conhecer nova gente). O filho, no retorno, tratou de falar logo com o pai (advogado aposentado).
Este, na sua sabedoria magistral, estufou o peito para dizer: “– Pai! Lembras daquele processo de terras? Aquela disputas de décadas? Querela infindável entre as famílias das colônias! Pude, em poucos dias, dar um desfecho nesta disputa. Quis demonstrar-lhe o conhecimento e eficiência! Fiz em poucos dias aquilo que não conseguistes dar termo em anos!”
O pai, assombrado e surpreso, arregalou os olhos. Este, para o imaturo filho, disse: “- Confirmou-se a minha suposição de seres ingênuo e inconsequente. Achei-lhe bem mais astuto e esperto! Terminastes o processo? Como irás agora ‘ordenhar a vaca’? Matastes o animal ou, em outras palavras, eliminastes a galinha dos ovos de ouro? Precisas encontrar outros trouxas para ganhar o bom e suado dinheiro (com suas burrices de mostrar a força do Direito aos vizinhos)?” O rebento não soube contradizer os argumentos e “caiu-lhe o crédito do funcionamento da Justiça”.
A esperteza e inteligência mostram-se muito relativas. Uns, em certos dilemas, tem o maior interesse em prolongar e não resolver nada! Quê seria de certos profissionais caso não existisse os ingênuos (achando-se muito espertos)? Astutos e vividos são os pacatos cidadãos carentes de envolver-se em disputas e querelas. Preze teu suado dinheirinho em benesses e mimos (em vez de desperdiçá-lo em disputas vãs). Uma conversa franca e paciente, entre as partes antagônicas (de olho no olho), poupa aborrecimentos e resolve divergências.

Guido Lang
“Singelas Histórias do Cotidiano das Colônias”

Crédito da imagem: http://pisdc.com.br

Autopsicografia

          

          O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda 
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

Fernando Pessoa (1888-1935)

Crédito da imagem: http://camilalispector.blogspot.com.br